A arte de retratar um homem desprezível em "Egon Schiele - Morte e a Donzela"
Confesso ao leitor que está no meu universo de interesses indicar este filme. Mas antes, sinto a necessidade de posicionar algumas questões. Egon Schiele foi um pintor austríaco, cujo trabalho se assemelha ao movimento expressionista. O enredo apresenta seus traumas da pouca idade assombrada pela morte do pai. Também nos faz conhecer um artista abusivo, que oferece a sua contribuição distorcida para a história da arte. Egon foi um homem desprezível. É fato que o nu feminino habita a mente dos pintores masculinos, comportamento glorificado pela afirmação estética do belo. No entanto, a obsessão de Egon pelo corpo das mulheres é retratada de forma quase torturante. O filme se constrói apenas baseado nas relações dele com suas inspirações personificadas, denotando um padrão completamente repulsivo. A primeira modelo de Egon foi sua irmã, com quem manteve uma autoridade sufocante e manipuladora. Mas ele atravessa correndo o limite do ético quando pinta crianças nuas, sendo acusado de estuprar uma menina de treze anos. É inocentado. Entretanto, são deixadas pistas para que o espectador conteste essa decisão.
Ao longo de sua vida Egon se dedicou exclusivamente aos desenhos e quadros, utilizando as modelos como meras ferramentas de trabalho em um jogo emocional bastante destrutivo para elas. O que me faz questionar: qual parcela cabe a Egon Schiele na história? Em seu julgamento, rebelou-se contra o juíz que queimava a pintura da menina nua. Disse que sua liberdade de expressão havia sido violada. Que liberdade de expressão autoriza o abuso de crianças? Ele ainda afirma que servia à nação através de seu trabalho. Minha opinião: Egon foi um homem prepotente e nocivo, cuja arte é bela e só. Há uma discussão em torno da separação entre a obra e o artista e não acredito que a autonomia da obra deve ser mais importante do que seu contexto perverso. Por isso, indico “Egon Schiele – Morte e a Donzela”. Para que possamos descobrir o que está por trás dos quadros. Para refletir sobre o mercado de arte – as pinturas do autor são vendidas por milhões. E para quebrar paradigmas no pensamento edificante desses talentos “provocativos”.
Não se deixem levar pelo trailer oficial do filme. Pois este segue a cartilha machista do século XXI e suaviza os acontecimentos. Egon não ousou quebrar tabus, mas se valeu da subjugação feminina para exercer sua arrogância artística. Ademais, apreciei as cores vivas dispostas na produção e a edição. O fio condutor, de fato, são as mulheres. Contudo, o filme simplesmente está, para que o espectador faça suas conclusões. Dispensa artifícios que engajam o público em determinado juízo de valor, expondo os fatos em busca de uma neutralidade. Pelo menos, é o que parece num primeiro momento. Após refletir, creio que algumas escolhas podem ter sido propositais. Inclusive, o próprio protagonismo das relações entre Egon e o sexo oposto formam um norte crítico. São priorizadas, em detrimento dos homens que marcaram a vida do artista. A influência de Gustav Klimt passa brevemente, como recurso na introdução da personagem que viria a ser a Dama. Já a morte galopa ferozmente e leva Egon Schiele muito cedo. Cenas um tanto mórbidas roubam a vida do artista, outrora iluminada pela dor das mulheres que deveriam servir ao seu talento.