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Mulheres de Wakanda [Contém spoilers de "Pantera Negra"]


“Ao colher o fruto de lutas do passado,

vocês devem espalhar a semente de batalhas futuras”.

Angela Davis em Mulheres, Cultura e Política (2017)

Um dos filmes da Marvel mais aguardados do ano estreou mundialmente no dia 15 de fevereiro de 2018, gerando muitas expectativas em torno de seu lançamento. Falo isso porque não sou leitora árdua de história em quadrinhos, não acompanho a história do personagem Pantera Negra desde sua primeira aparição em 1966, mas pesquiso, dentre outras coisas, questões que envolvem representações no meio audiovisual. Logo, o filme se apresenta como um excelente objeto de análise para quem se filia aos estudos culturais e sua abordagem interdisciplinar ao pensar a cultura a partir de exemplos midiáticos.

Aprendi com Stuart Hall que as representações não dão conta da realidade, mas concordo com Pierre Bourdieu que afirma ser preciso incluir no real a representação do real, para pensar justamente a luta em torno das representações. Entendendo essa complexidade, afinal “a representação não é uma prática simples” (HALL, 2016), busco nesse texto discutir algumas questões que me são caras, lembrando sempre que a cultura é arena de disputas por atribuição de sentido.

Dirigido por Ryan Coogler, o filme conta com grande elenco: Chadwick Boseman, Michael B. Jordan, Lupita Nyong’o, Daniel Kaluuya, Sterling K. Brown, Forest Whitaker, dentre outros. Nessa tentativa de resenha, eu poderia falar sobre o rei T’Challa e sua força impressionante; sobre os rituais encantadores que os povos de Wakanda realizam; dos efeitos especiais mirabolantes; das sequências de lutas intensas; dos figurinos deslumbrantes; do embate do Pantera Negra com o “anti-herói” Erik Killmonger, um dos personagens mais bem construídos em termos de complexidade; da trilha sonora envolvente feita por Kendrick Lamar; de parte da equipe ser composta por pessoas negras; dos diálogos provocativos com os homens brancos colonizadores; dos recursos naturais poderosos de Wakanda; de seus avanços tecnológicos com a utilização do Vibranium; do grande elenco reunido; do respeito à ancestralidade; mas escolhi destacar aquelas que foram, para mim, as verdadeiras protagonistas do filme: Ramonda, Shuri, Nakia e Okoye, as mulheres de Wakanda.

Apesar de, no filme, o destaque das lutas femininas serem as físicas, se defendendo do perigo e seguindo com coragem nas batalhas, escolhi destacar a luta como metáfora para relacionar as personagens com outras mulheres de luta (política, ideológica, social, cultural etc.), que são tão guerreiras quanto as de Wakanda.

Ramonda, interpretada por Angela Bassett, é a rainha de Wakanda, mãe do rei T’Challa, o Pantera Negra, uma mulher forte, protetora e sábia que conduz com plenitude a vida no reino, apoiando seu filho em todos os momentos da trama. Com seus dreads brancos demonstrando maturidade, de alguma maneira me lembrou a teórica, pesquisadora e ativista antirracista brasileira Sueli Carneiro (1), que é fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra. Ramonda representa uma líder matriarca, que esteve ao lado de seu marido, e, após a morte dele, segue aconselhando seu filho nas decisões a serem tomadas na região.

Shuri, interpretada por Letitia Wright (2), é a irmã mais nova do personagem principal; inteligente, sagaz e ligada à tecnologia. Ela tem um humor divertido, o que rende diálogos descontraídos e verossímeis com seu irmão. Sua vontade de lutar me lembrou as diversas mulheres negras que ingressaram nas universidades brasileiras nos últimos anos, cada uma fazendo sua ciência nas mais variadas áreas e se tornando referências acadêmicas, sociais, culturais e/ou políticas.

Nakia, interpretada por Lupita Nyong’o, representa a companheira do Pantera Negra, como mulher independente, focada em seu trabalho e que coloca sua vocação como prioridade, mesmo que tenha que abdicar de momentos ao lado de seu amado. Sua inteligência e luta por justiça me lembrou Angela Davis, filósofa e professora estadunidense tão importante historicamente na luta feminista, antirracista e anticapitalista (3). Nakia se mostrou importante em vários momentos do filme, principalmente em seu projeto de disseminar a tecnologia de Wakanda para a emancipação dos sujeitos para além de seu território, posição contrária ao conservadorismo inicial do rei T’Challa.

Okoye, interpretada por Danai Gurira, é a melhor guerreira de Wakanda, uma mulher movida por seus ideais, que tem habilidades incríveis de luta e não se deixa abater pelas adversidades no caminho, o que me fez lembrar as histórias de Dandara, importante líder quilombola brasileira que lutou ao lado de Zumbi dos Palmares contra a escravidão. Okoye, de forma divertida, também critica as armas de fogo e demonstra seu desconforto ao ter que usar uma peruca de cabelo liso em uma situação de disfarce.

Vale destacar também que, apesar de não haver relação oficial entre os quadrinhos e o Partido dos Panteras Negras, é difícil imaginar que a escolha da cadeira real de T’Challa similar a do líder do Partido seja coincidência, assim como o fato do anti-herói Killmonger ser de Oakland, na Califórnia, berço dos Panteras na década de 1960 (4).

Obviamente que todas as referências aqui utilizadas fazem parte de um repertório composto ao longo de uma trajetória e nem todo mundo enxerga as mesmas coisas num mesmo filme (o que é ótimo, por sinal). Concordo que a revolução não será televisionada (“the revolution will be not televised”), trecho presente no trailer oficial do filme e título da canção homônima, de Gill Scott-Heron lançada no contexto social e político dos Estados Unidos da década de 1960. Ou seja, a Marvel, como editora de quadrinhos estadunidense, ao produzir o Pantera Negra, sequer se propõe pensar a revolução, mesmo porque não me parece ser esse o projeto central da indústria cultural na qual ela está inserida. Mas não há como negar, na sociedade midiatizada na qual vivemos, a importância de ver a força de mulheres negras guerreiras na tela do cinema, sendo inspirações para um futuro melhor.

Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana contemporânea, já nos alertou sobre o perigo da história única, que, ao criar e reforçar estereótipos, impede novos pontos de vista e, consequentemente, novas representações e histórias. A mensagem final do filme, presente no discurso do rei T’Challa na sede da ONU, diante de diversos líderes mundiais, diz que é preciso construir pontes ao invés de muros, importante lembrete nesse mundo caótico em que vivemos e recado direto ao atual presidente dos EUA. Aprendi essa lição fundamental com a escritora Gloria Anzaldúa (1942-2004), chicana que viveu na fronteira entre Estados Unidos e México, que ensinou, através de sua consciência mestiça, algumas formas de lidar com as fronteiras, sempre enxergando “tudo com olhos de serpente e de águia”. Gloria, mestiça como KillMonger e eu, também traz uma mensagem importante que acredito ser condizente com os ideais das mulheres de Wakanda, que escolhi para finalizar essas considerações:

Apesar de ‘entendermos’ as origens do ódio e do medo masculinos, e a subseqüente violência contra as mulheres, nós não desculpamos, não perdoamos, e não iremos mais tolerar. Dos homens de nossa raça exigimos admissão/reconhecimento/revelação/testemunho de que eles nos ferem, violam-nos, têm medo de nós e de nosso poder. Precisamos que digam que vão começar a eliminar suas formas dolorosas de nos diminuir. Porém, mais do que palavras, exigimos ações. Dizemos a eles: iremos adquirir poderes iguais aos de vocês e daqueles que nos humilharam.

PS: Texto dedicado à minha avó paterna que não conheci: Wakanda é aqui <3

1. “A filósofa também é autora da obra Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil que traz uma abordagem crítica dos comportamentos humanos e apresenta os principais avanços na superação das desigualdades criadas pela prática da discriminação racial – indicadores sociais, mercado de trabalho, consciência negra, cotas, miscigenação racial no Brasil, racismo no universo infantil, obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas públicas do País, entre outros.” Disponível em: https://www.geledes.org.br/sueli-carneiro/ Acesso em 15 de fevereiro de 2018.

2. Por um momento fiz uma associação pessoal com a personagem Ellen da temporada atual de Malhação, interpretada pela atriz Heslaine Vieira, com a temática “Viva a diferença”, cuja representação foge de alguns estereótipos ao associar o uso da inteligência para o desenvolvimento tecnológico de programas, aplicativos e ligados à utilização de computadores e celulares de maneira geral. Também lembrei das personagens do filme “Estrelas além do tempo” (Hidden figures), lançado em 2017, que foi inspirado nas mulheres cientistas afro-americanas que trabalhavam na NASA enfrentando o racismo e o machismo diariamente.

3. Para mais informações sobre a trajetória de Angela Davis, ver a dissertação de mestrado de Raquel Barreto, intitulada Enegrecendo o Feminismo ou Feminizando a Raça: Narrativas de Libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez (Pós-Graduação em História Social da Cultura, PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2005).

Referências acumuladas ao longo dos últimos anos, que serviram de base para os assuntos citados aqui, fica a dica de leitura caso tenham interesse:

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

______. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands: the new mestiza = la frontera. 4th ed. San Francisco: Aunt lute books, 2012.

______. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. In: Revista Estudos Feministas. Ano 8. Primeiro semestre 2000. Florianópolis, Brasil.

ARRAES, Jarid. As lendas de Dandara. São Paulo: Editora de Cultura, 2016.

______. Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis. São Paulo: Pólen, 2017.

CARNEIRO, Sueli. Negros de pele clara. Jornal Correio Braziliense. Disponível em: https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/ Acesso em 15 de fevereiro de 2018.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

______. Mulheres, Cultura e Política. São Paulo: Boitempo, 2017.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: Uma breve discussão. In: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/03. Brasília: Ministério da Educação, p. 39-62, 2005.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.

______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2. Edição, 2010

RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala?. Belo Horizonte (MG): Letramento: Justificando, 2017.


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Manu Mayrink é fanática por livros, filmes, séries, música e lugares novos.  A internet é seu maior vício (ao lado de banana e chocolate, claro) e o "Alguém Viu Meus Óculos?" é seu xodó. Ela ama falar (muito) e contar pra todo mundo o que anda fazendo (taurina com ascendente em gêmeos, imagine a confusão!). Já morou em cidade pequena e em cidade grande, já conheceu gente muito famosa e outras não tanto assim (mas sempre com boas histórias). Já passou por alguns lugares incríveis, mas quando o dinheiro aperta ela viaja mesmo é na própria cabeça. Às vezes mais do que deveria, aliás.

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